Permesso.
Todo mundo tem um dia de porre. Hoje é o meu.
Um porre, um dia que bebi inteiro no copo, misturando elementos incompatíveis, desde a vontade matinal de dormir por mais meia hora (que mais cinco minutos era na época do colégio), passando pelo combate animal para ter razão, até a dor de cabeça causada por problemas intermináveis e por pessoas más. Nossa, como tem gente mau caráter no mundo. Pessoas que querem tirar proveito de qualquer situação, procurando brechas para destilarem venenos, procurando maneiras acrobáticas para fugirem de toda responsabilidade e se possível, até transferirem a terceiros. Por outro lado, como tem gente boa também, gente fina, elegante e sincera com habilidade pra dizer mais sim do que não. Gente que consegue transformar um momento maldito numa benção, pessoas que nos fazem enxergar flores nascendo na imperfeição e que com isso engrandecem a nossa existência e perfumam tudo ao redor.
Mas eu estou longe de todas as pessoas agora. Sou um deserto cheio de palavras. Sou um universo na praia deserta e fria. Chove. Meus pés descalços na areia molhada conseguem manter o equilíbrio do resto do meu corpo e nem sabem o porquê. Agora sou apenas eu e o mar. Não há barulho da velha impressora matricial em uma sinfonia infame, não há chamadas de telefone, não há ringtones, nem carros, nem buzinas, nem ordens, reclamações ou explicações, não há choro, nem velas, não há o som dos teclados nem a campanhinha, não há carros de publicidade nem apregoamento de partes, não há o “barulhinho de aeroporto” da senha (finalmente) no visor do Banco, não há declarações de amor e nem de guerra. Apenas há ressaca. Apenas a ressaca. Capitu tinha olhos de ressaca. Olhos que tragavam.
O mar nos traga e por dento pedimos que algo nos traga a luz, mesmo que inundada.
As palavras, estas não se diluem, pelo contrário, se solidificam e criam vida e forma. Parece que romperam uma represa e voam partindo o ar, e querem me ferir e querem me curar. A frase inesperada e tão clichê... “Amo você”... Eu queria ouvir, porém, não tinha intenção de dizer, nem de sentir. Eu desejei que o amor fosse sexualmente transmissível, mas o sexo só transmite doenças... Embora se morra mais de amor do que de sífilis. O amor em formato mínimo... O grande amor que vence a morte. Amor, ramos, Roma e romã, tudo no meu copo. Orientações tributárias, desperdício, e-mails, a fome das três da tarde, o café pequeno, a saudade, tudo no meu copo. As baratas, a cidade alagada, o céu cheio de estrelas acima das nuvens que choram, seus olhos que mudam de cor como camaleões, tudo no meu copo. Minha armadilha e meus descuidos, todos os papéis sobre a mesa, contratos e tratados, o cinema cancelado, as contas pra pagar, a poesia da 3º Ponte, tudo no meu copo. Entorno. Já estou ébria. Quando a onda vem (mais quente do que eu esperava) espumante e sem fúria, a vida perde o sentido. Por um instante todas as coisas não têm sentido nenhum, nenhum, nenhum... É um instante de absoluto silêncio onde o nada existe. Então a onda retorna ao mar e tudo volta ao real, como uma coisa só, com um completo, absurdo e quase insuportável sentido que vem e sempre volta, como a náusea, como os carrosséis, como os nossos erros.Neste momento, perante o mar, eu rio.Nesse meu sorriso cabe o mundo inteiro, baby...
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Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não?
(Caetano Veloso - ALegria, Alegria)