quarta-feira, 3 de outubro de 2012

INTERESTELAR CANOA (parte 1)



Então a música surge como um carro acelerado na via urbana onde a velocidade máxima é de 40km/h. Você atravessa, mal olha para os lados e é atropelado pela sentença: é impossível ser feliz sozinho.
Uma vez que toda a trajetória, toda escolha, toda consequência, toda alegria e toda dor possuem caráter personalíssimo, podendo ser vivenciada apenas por um só, pelo dono do corpo, da alma, do espírito; uma vez que o capinar é sozinho, uma vez que embora compartilhemos a vida, cada vivência é apenas nossa, como sobreviver ao impossível? Como sobrevivermos ao fato de sermos tão fatalmente sós e buscarmos a felicidade mais que tudo?
Você se apaixona e cria laços invisíveis com a outra pessoa. Laços que unem e laços outros cujas pontas são como ventosas da sangue-suga. É uma sangria afetiva realizada consensualmente. Você se inebria e da sua boca saem palavras cheias de mel. Você conversa como se estivesse falando com uma criança com menos de três anos!!! Tô com xaudade colaxão... Quem é a coisinha maisi fofa desse mundo?!!! Amo voxê...
Sua atmosfera é o doce encanto dos dias ensolarados cheios de borboletas no jardim, céu com arco-iris, pote de ouro e talvez um doente mágico.
Você faz promessas, faz planos, faz surpresas, faz loucuras, faz sacrifícios, mas não deixa de sentir a nuvem negra sobre a sua cabeça. E aquela conhecida sensação de que há uma bigorna fumegante no estômago só de pensar que o outro pode não sentir por você o mesmo encanto, o mesmo amor, começa a mudar sua freqüência de esporádica para constante. A expectativa da reciprocidade, da exclusividade, da priorização começa a se movimentar na intimidade, desgastando as malhas finas de um relacionamento, tornando a nuvem do amor mais gris. Essa nuvem não produz chuva, mas incontáveis DRs, relatórios e "isso requer". O relacionamento começa a ficar protocolar. O outro já não pode existir sem nos afetar. Não pode sorrir do mesmo jeito, nem abraçar seus amigos do mesmo jeito. Não pode contar piadas do mesmo jeito e nem cantarolar aquela canção do passado que ele gosta, que sempre gostou, mas que você preferia que ele esquecesse... Pra você, quando ele canta, ele lembra da ex, do ex, do passado onde você não estava. Todo espaço que você não ocupa te pre-ocupa.
A construção começa a ruir, mas ninguém reclama, porque a parte boa é quente, confortável, inunda a alma de uma alegria compartilhada, de palavras entorpecedoras, de volúpia. As arestas, o desenquadrado, os desencontros, as diferenças são compensadas por essa coisa incerta que se agiganta, se intensifica quando o mundo é apenas de dois.
Você se ajeitou na cama pequena, ou na king, fez um poema, cobriu o outro de amor, e o outro agradecido, apaixonado, retribuiu, almejou o altar, a eternidade, os filhos, os nomes dos filhos. O produto disso é tão cheio de energia que se parece muito, muito mesmo com amor.
Ora, quem poderá dizer que não? Quem poderá alegar que ambos não lutariam para permanecerem juntos, na alegria, na tristeza, na dor, na doença, na fartura, no fim do mês, nas aparições da ex,do ex, dos exes, nas ligações suspeitas, nas mensagens tortas do celular, numa foto, numa postagem curiosa do face, na novata gostosa da academia, daquele colega de trabalho que é pra lá de ousado... Claro que sobreviverão. Quem tem o amor, tem tudo, não é assim? Quem poderá dizer que aquela coisa pulsante que vivem juntos, que aquela vontade que sentem de se fundirem um no outro não é amor?