domingo, 3 de julho de 2016

O Amor é o novo Poder (que c'est vie la nouveauté)


Pode conter spoilers de Orange is the New Black.

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Terminamos de assistir ao último episódio de Orange is the new black.

Olhei para Gabs e ela fez um breve silêncio depois do último olhar da Poussey e após desabou em lágrimas. Eu também estava chorando, como fiz em quase toda temporada, mas fui dar o meu abraço de consolo, pois acreditei que fosse pela perda da personagem pela qual sempre nutrimos afeto. Mas depois ela começou a soluçar e intensificar o choro. Percebi que o motivo estava além da série.

Tenho percebido ao longo desses últimos anos que a ficção é apenas um retrato ensaiado da realidade. Com trilha sonora sincronizada.

Hoje é sábado e sábado é dia da Gabriela fazer visitas ao Centro Socioeducativo de Sete Lagoas. O CSE. Na semana anterior ela enfrentou um agente misógino e homofóbico. Temi pela retaliação.

Eu cuido da parte profilática, que numa visão à curto prazo é praticamente ineficaz. Os meninos que aprendemos a amar continuam movimentando esquinas, ingressando no mundo fascinante das drogas, que parece ter maior poder do que Jesus e nossas aguerridas tentativas de transformar destinos, mostrar outras alternativas. 

Pelo visto, estamos gastando energia tentando mover uma peça emperrada do sistema. As vezes a gente até pensa: Tudo bem,  até pode ser que os dragões sejam moinhos de vento, mas vira e mexe a gente vê as pessoas queimadas pela baforada flamejante. Como negar que havia um dragão ali? Por mais que estejamos ainda na base da pirâmide social, raramente respinga em nós. Queima apenas nosso coração mesmo, mas fica tudo bem quando lembramos que existe Mc Flurry e Kit Kat. Palavras estrangeiras com gosto de perfeição que só parecem irônicas agora enquanto escrevo, nesse contexto cinza delineado pelas palavras acima. E as cinzas são reais.

Mas ok, o problema da opressão é universal. Não é invenção do primeiro mundo.  O sistema zomba de quem faz força pra mover a engrenagem, porque foi tão genialmente criado ao longo da história do mundo, que não depende de líderes. Ele se auto alimenta e cria seus próprios líderes, mudando de vez em quando, pra variar, a ideologia dominante. No final, tem sempre alguém querendo um pedaço maior do pão, mas quem ganha é só uma pequena parte que tem privilégios no modelo que vigora, seja dinheiro, beleza ou armas. E quem sobra com as migalhas ou com o vento é quem já não tem nada desde o início. E dentre quem não tem nada desde o início, ainda há subdivisões com variações tristes sobre não ter nada.

É um saco, porque os planos nascem com o germe da própria destruição, como diria Marx, tido como vivo por alguns. É assim com o sistema prisional que não funciona. Com o educacional que não funciona como deveria. Com a saúde. Com as coisas básicas que fazem o ser humano ser humano.

Quando não se tem nada, também não se tem nada a perder quando se trata de ganhar alguma coisa. Ou dinheiro, ou poder, ou voz, ou respeito. E se o sistema é estragado, então se torna uma cobra que para se manter viva precisa se alimentar do próprio rabo. Ele se destrói enquanto se alimenta, e coitado de quem fica na frente na boca da cobra para impedir a mordida ou fica criando rabos metálicos de proteção da cauda. Com o tempo a cobra quebra o dente e fica impotente, pois perde as defesas, os ataques e o técnico, se a cauda tiver proteção metálica. Então não adianta certas estratégias de melhorar o sistema. Pode até trocar a cobra, mas vai ser a mesma coisa com a próxima. Temos testemunhado isso ao longo da história da humanidade.

Infelizmente isso não vai mudar se houver uma revolução social ou política, violenta ou não. Porque a matéria prima da revolução vai ser sempre o ser humano. E o ser humano já é um sistema em si, cheios de peças para consertar e aprimorar.

Poussey, embora rica e instruída, era preta. E quando ela morre e eles tentam encontrar algum potencial ofensivo nela, tem como resposta: Ela tinha 45 kg. Era fraca. E os fracos são esmagados.  O policial Baxter que a matou acidentalmente também era uma peça fraca com nome de cachorro e foi esmagado. Os bons não têm vez.

Caputo é vulnerável e também é fraco. Tem ímpetos nobres, mas está encurralado. E não o culpo pela covardia ou pelo impulso sexual que o deixa fraco e mais vulnerável ainda. Quando ele acorda, está igualmente esmagado, e percebe que a instituição institucionaliza as pessoas e formata seus corações.

A Crazy Eyes, que sabe o mecanismo dos buracos de minhoca e viagens intergalácticas, muitas vezes percebe a verdade antes de todo mundo, mas não sabe como empregá-la. Quer sentir o esmagamento, mas por ser livre dentro de uma prisão, já foi esmagada.

A institucionalização potencializa a insanidade e intensifica a sombra.

Lolly estava na linha de transição dos mundos e tinha informação de todos esses mundos. Estava inapta para o plano real das vibrações, então até o telespectador prefere que ela pague do que Alex Vause, branca, linda, cheia de sex appel, ou Red, que nem no esquema estava. E dormimos sossegados quando dizemos: Ah, mas foi ela mesmo que matou.

Mesmo com todas as linhas aniquiladas, há sempre uma luz no fim ou no meio do túnel. Ou do corredor. A Doggett, por exemplo. Já chegamos a odiá-la e querer que ela morresse. E talvez nem o estranho Healy (que tem a cura no nome) perceba que Doggett foi seu maior bem deixado ao mundo de Orange. Ele a ajudou no início ao impedir sua ruptura e a partir disso a caipira pode se reconstruir e se erguer através de uma força que ela não trouxe da estatura, da condição social, da beleza ou qualquer outro poder que não ela mesma. A amizade de Boo e Dogget foi uma das coisas mais lindas da 3 e da 4 temporada, e a lição sobre dor e perdão, embora clichê, foi o único poder que libertou pessoas ao invés de esmaga-las. E é o único poder no qual acredito para transformar esse mundo para melhor.

Vejo a mim. Eu me considero pacífica. Esforço pra caramba pra promover a paz nos ambientes onde estou. Mas aí uma série mostra o quanto não está tudo em paz dentro de nós quando a gente fica com raiva do opressor e quer que ele sofra, que apanhe, que verta sangue, que se humilhe e se contorça em culpa. Quis ver o sofrimento do Bigode, quis ver o sofrimento do Healy, e quis ver o sangue do Trepada. E sim, não quero que ele seja morto com o tiro da Daya, porque seria fácil demais. Ainda quero o sofrimento do vilão. Então não. Não estou em paz, porque algo se inflama dentro de mim a ponto de querer ver mais sangue do que justiça. E isso me aproxima da fera. Da fera que desejo deixar de ser.

Quando analisamos a história de cada personagem violento, encontramos razões que justifiquem suas escolhas e atitudes. Só que nós todos já sabemos que a violência não tem justificativas. Não estamos fadados ao fracasso. Existe a chance de escolher outro sabor, outra cor, de provar que o determinismo é uma ilusão pseudo- antropológica. Sim, há escolhas.

Olho nossos meninos do projeto e embora ainda encontremos a maioria nas esquinas da favela, exercendo o “ofício”, há aqueles que mesmo num ambiente inóspito, criado em situações totalmente adversas, são os lírios do pântano. E os outros? Por que os outros não conseguem ser? É só o sistema ou é uma pecinha interna?

Sempre haverá razões que expliquem porque alguém se tornou opressor e seguiu pelo lado negro da força.  Mas inexoravelmente haverá escolhas e paradoxalmente desejamos que a força esteja com o fraco, mas a força certa que o ajude a estender a mão ao invés de dar o soco. Porque disso já estamos cheios, e essa paz eu não quero seguir admitindo.


2 comentários:

Elga Arantes disse...

Que isso, hen?!! Como é que vc não está!!!! Blog fashion, mesmoooo.

hahaha...

Olha isso:

"Blogger sblogonoff café disse...
Eia...
Promessa é dívida, mesmo que seja no seu aniversário de 70 anos, Elga!!!

Bom, hoje vejo blogs como uma ponte que liga reinos diferentes.
Jamais pensei que pudessem transformar minha vida tão radicalmente.
Dos sites de relacionamento, é o mais improvável pra se construir algo sólido com desconhecido.
E vê, primeiro conheci você, a Patrícia (que sumiu pra mim) e a Flor. Agora tem o Àlvaro, a Vã, pessoas incríveis que talvez o mundo real não me revelasse.
A gente escreve pra viver!!!
A gente escreve pra construir.
A gente escreve porque a linguagem de BlogoZ é o nosso sinal de tocar o outro (como o ET e o dedo do menino - by Steven Spierberg) e acender luzes!

Saudades dos velhos tempos onde o tempo era maior!!

quarta-feira, maio 26, 2010 Excluir"

Será?

Sopro de Elga

Tempos de Aracne disse...
Este comentário foi removido pelo autor.