Meus pais, quando ainda namoravam, passaram um período se encontrando apenas 2 vezes por ano. Uma nas férias de julho e outra nas festas de fim de ano. A comunicação era por cartas que com frequência eram revistadas pelas freiras do internato onde minha mãe estudava. Conteúdo impróprio não era enviado ao destino. Acho que era assim, pequenos crimes legitimados pela proteção à moral e aos bons costumes. Mas nem é disso que quero falar.
O fato é que para o meu pai e minha mãe, a eternidade durava muitos meses. Hoje em dia, se eu clico no ícone e ele não abre imediatamente, eu já acho que a eternidade cabe ali. Quando navego pelo firefox e de repente aparece a tela: "Desculpe, Isto é constrangedor!" eu logo ativo a paciência.
Antigamente 1 minuto demorava mais pra passar, mais que um chiclete!
Hoje, curiosamente, as coisas andam mais depressa e mesmo assim ainda não temos tempo pra quase nada. Nós nos apressamos na proporção em que o mundo se apressou e até nos centros quase rurais crescemos como frango de granja. Derrepente (detesto escrever essa palavra aglutinada assim. Eu gostava de de repente... thin air), então, derrepente as coisas ficaram sanfonadas, cresce aqui, diminui ali. Tenho amigos de longe. Meu sobrinho no sul de MG espirra e em tempo real eu digo "saúde" sem gastar nem impulsos telefônicos. Minha amiga da Polônia tira uma foto e dez minutos depois eu comento a foto, as luzes, os balões e os pombos de uma praça polonesa. Quero tirar uma certidão negativa de alguma coisa e nem enfrento fila em órgão público. Só digito algumas senhas e provo que não sou robô. Mas a loucura disso tudo é a hipnose provocada pelo cruzamento de dados dentro da Matrix. E como isso funciona bem, principalmente sobre os incautos.
Me considero uma pessoa muito simples. Nunca fui de deixar me seduzir por vitrines e vendedoras que chegam com sacolas repletas de coisas bonitas das quais definitivamente não preciso. Calcinha, jóias, roupas, sapatos, bolsas... Sempre consegui ficar na minha, a menos que estivesse mesmo precisando de algo.
Ocorre que o sistema impressiona pelo apelo sutil, aliás, pelo apelo descarado que realiza nesse veloz mundo a divagar. Meu tênis, velho de guerra, gastou o solado de tanto usar. E justo agora que eu tinha inventado de caminhar na lagoa. Como não tenho muito tempo para ir em lojas e ficar experimentando um tênis, me indicaram um site na internet que vende calçados: Vai lá! É ótimo, tem vários modelos de todos os preços e marcas e chega em 3 dias.
Fui lá, né?! Em 2 horas agradei de um tênis e realizei a compra... Por que demora também, sabe? Você encontra um modelo e ainda clica no botãozinho de cores daquele modelo. Talvez demore mais do que ir numa loja física, porque são tantas as opções. Mas já era tarde da noite, nem tinha loja aberta naquela hora. Era domingo... Então (...) Comprei o tênis e saí do site. Antes de clicar na escolha, cliquei em vários modelos que iam me agradando pra fazer um melhor de 20 no final.
Saindo do site, não achei que aquilo iria interferir em minha vida. Rá...
Na segunda-feira, meu e-mail já estava infestado de promoções e anúncios. Como não tenho tempo, vou excluindo tudo. Mas isso não basta. Os anúncios te perseguem. Um dia desses pensei: poxa, comprei um tênis pra caminhar... Agora preciso de um para o dia a dia. Pois é, comprei outro. Mas o sistema quer sempre mais de você. Quer dominar sua vontade, quer descobrir seus gostos, suas preferências, quer te seduzir com falsas ofertas e te empurrar corpo afora viagens, tênis, tratamentos de beleza, acupuntura, mapa astral, comida e tudo o mais.
E é tenaz!
Você juçga estar imune aos reclames, mas é preciso ter o chamado "domínio socrático". Há alguns dias estava eu num site jurídico, JURÍDICO, quando notei um anúncio na lateral da tela. Entre anúncios de cursinhos e livrarias, a loja de Tênis. Eram todos os modelos que gostei passando em fila! Exatamente aqueles que eu desejei!! Se eles pudessem rebolar, eles rebolavam. Mandavam beijo, davam piscadinha... Então aquele tênis do qual eu definitivamente não precisava, mas que era lindo, desfilou deslumbrante na tela, desviando minha atenção do artigo tão importante que eu deveria ler.
Autômata, cliquei na figura que aumentou e tornou-se a página principal em meu monitor. O tênis estava na promoção.!!!!25% mais barato do que o modelo parecido que vi na loja da avenida. Meu cérebro começou a criar argumentos para legitimar a possível compra. E entre pós e contras vi surgir uma janelinha com os dizeres: Compra realizada com sucesso. Parabéns, você acaba de adquirir um produto de qualidade.
Simples, quase indolor. Parece mágica! A gente até esquece as prioridades... A gente nem lembra que há pouco discursava sobre autonomia, simplicidade e liberdade... A gente se entrega na onda e rala as coxas, costas e bunda na praia porque não aprendeu a furar a onda, a surfar com maestria, a resistir.
E quem quer resistir?
Quando acabar, o maluco sou eu...