terça-feira, 4 de junho de 2013

CÉU - DE ONDE SAI O DIA

A criança que fui era como uma jujuba verde.
Alguns gostam, mas a maioria rechaça.
Eu montava o mundo com as peças erradas e achava impressionante o mundo simplesmente entender o contrário do que eu entendia. O meu óbvio era um absurdo para os outros e foi por sorte (ou mérito) que tive uma família que decodificava meus absurdos e os transformavam em algo normal.
Ocorre, que a verdade está la fora.
Demorei muito para aprender algumas coisas.
Aprendi a duras penas o significado da palavra depois.
Fiz um pedido de manhã e me responderam: depois.
Esperei tanto esse depois... Quando o pedido foi atendido, o sol já desaparecia no horizonte.
Passei muito tempo da minha infância acreditando que "depois" era o pôr do sol.
- Olha mãe, que depois bonito!
Outra vez era perguntar pra onde meu pai estava indo.
Ele dizia: Pra China.
Um dia, de tanto insistirmos, meu pai levou a mim e ao meu irmão pra China.
- Pai, leva nós na China?
- Paaaai, nós qué i pra China também.
(sic)
E ele levou. Era uma bica no meio do mato, a uns 10 km da nossa casa.
A gente enchia o cantilzinho de água e voltava pra casa. 
Lembro de que lá havia  2 vira-latas, um caramelo e um preto.
Cachorros da China que nunca pudemos levar pra casa.
Eu adorava ir pra China, sem carimbos e passaportes, só o velho passat.
Outras vezes via o Jornal Nacional e quando eles falavam de conflitos, eu achava que cada país era uma bola girando no espaço e que se um brigasse com o outro, ia sair um monte de bolinhas da bola maior, como pedras arremessadas. Não sabia distinguir países e planetas. Pra mim tudo era uma bola colorida girando no espaço cheio de estrelas e de problemas.
O pior pra mim foi o ingreso na escola.
Foi a coisa mais mágica e mais sofrida que aconteceu nos meus 5 anos.
Eu e o meu irmão não fizemos o maternal. Entramos direto no pré, hoje 3º período, pois somos do início do ano.
Nós já sabíamos ler, mas eu não sabia socializar.
Meus colegas não sabiam ler, mas sabiam o mundo.
Um dia a professora pediu que fizéssemos tiras.
Quando ela disse "tiras", me deu uma angústia enorme.
Olhei para os lados e vi que meus colegas cortavam o papel parecendo batata frita. 
Pensei preocupada:
Nossa eles vão fazer um tanto de tiras. Eu não sei fazer nenhum direito.
Naquele momento, comecei a fazer o melhor desenho que podia em um pequeno espaço.
Fiz o quepe, o uniforme, o distintivo e o revólver.
Depois fiz outro e outro.
E a professora veio perguntar o que havia de errado comigo:
- Por que você não está fazendo tirinhas como todos? Agora não é hora de desenhar.
Falei que fiz sim e mostrei o desenho dos tiras. (Na minha cabeça só lembrava das frases de A Gata e o Rato).
Ela pegou e levou embora. Disse que tava errado.
Me deu outro papel e pediu pra eu fazer de novo.
Fique sentada em minha carteira com a tesoura na mão e o papel na outra.
Estava um pouco aliviada de não ter que desenhar policiais (eu ainda não desenhava bem e isso nunca mudou muito!), mas também decepcionada de saber que minha missão era fazer um monte de batatas fritas sem graça.
E assim a gente começa a descobrir que uma palavra pode significar mais de uma coisa e que se você não entender as coisas direito, a professora vai acabar achando que seu pai tem problemas com a polícia.



Legal ver:
http://catracalivre.com.br/geral/cidadania/indicacao/dicionario-feito-por-criancas-revela-a-adultos-um-mundo-que-ja-esqueceram/

2 comentários:

Alvaro Vianna disse...

Eu conheço umas crianças cujos pais têm problemas com a polícia. Elas não assistem A Gata e o Rato. Então eu tenho pena do papel quando elas começão a cortar tiras.

Bom inventário. Beijo.

Vanessa disse...

Criança: bicho de realidade paralela que quando cresce, ingressa no mundo sem graça e cor que é ser adulto.