sábado, 23 de fevereiro de 2008

Nostalgias de verão

Por todo o dia uma música tocou em minha cabeça trazendo o passado de volta ou me levando de volta pra lá. Não sei o nome dela. Sei que está no disco The Good, The Bad And The Ugly, trilha sonora do filme homônimo de bang bang italiano executada pela orquestra de Hugo Montenegro. Não era raro esse disco tocar em minha infância, na enorme vitrola com válvulas e caixas gigantes. O que esta música fez comigo foi um desdobramento quase astral. Pude sentir o cheiro de lustra móveis na estante da sala onde ficava a vitrola. Vi os volumes de uma enciclopédia de capa verde que ficavam enfileirados na mesma estante. Então veio a saudade e a imersão. Lembrei de vários momentos em anos diferentes. Saudades da tia Nicinha, das conversas de madrugada, das histórias de fantasmas, do porco sujo, de como ela me fez conhecer Pink Floyd, do apagador de mão que ficava na cabeceira de sua cama, do penico que ficava embaixo (!), dos legos que a gente montava e remontava casas de faroeste, das balas Toffe que ela sempre tinha... Saudades da tia Marilda, de sua jovialidade, de sua elegância, de seus momentos de perua, de seu humor, da prateleira cheia de maquiagens e perfumes, de sua moda, do modo como fazia qualquer filme dramático parecer comédia! Saudades da Vovó Dina, de sua sabedoria paciente, de observar o tempo entre a lucidez e a epifania, de suas rugas, do barulho que ela fazia com a boca quando ia jogar milho para as galinhas, da alegria etílica que ela ficava quando bebia vinho no natal, de sua caneca esmaltada com uma ferrugem no cantinho, de sua poltrona na sala de frente à TV, seu trono de rainha. Saudades da presença invisível do Vovô Tuninho. Saudades do flamboyant florido e da sombra que ele fazia em frente à casa. Saudades das ruas de cascalho de Araçaí, onde pegávamos cristais para fazer tesouros. Saudades de esperar o caminhão do tio Zé Afonso passar na pracinha do Manoa pra gente ir pra Araçaí na carreta, junto com as latas de leite! Saudades de correr atrás da Folia de Reis que passava pelas ruas de cascalho. Saudades de nunca ter gostado de acompanhar procissão de semana santa e ficar no portão da vovó com medo da luz da Florzina! Saudades de brincar de ter coragem e tocar o crânio aos pés do cruzeiro da praça do cemitéiro. Saudades da casa na rua Montes Claros. Da Vovó Nica. Saudades de sua devoção, de sua fé, de seus terços e rezas, da vontade que ela tinha de viver superando tantas limitações que o corpo e a saúde impunham. Saudades do jardim com trevinhos. Saudades das cadeiras na varanda. Saudades da cadeira dobrável do vovô. Saudades do Vovô Tião chegando com o pão embrulhado em um papel cinza e amarrado com barbante que ele sempre guardava. Saudades de levar para o Jônatas a parte do jornal sobre carros que o vovô sempre separava! Saudades das três garrafas térmicas sobre o armário da cozinha. Uma com café forte, outra com café fraco e a terceira com chá Mate Leão. Onde estão todos agora? Daquele tempo não ficou nada. A casa de Araçaí está vazia. A da rua Montes Claros está alugada para estranhos. As ruas de cascalho foram asfaltadas. O flamboyant teve que ser cortado para não estragar o passeio. O Tio Zé Afonso não tem mais caminhão de leite. Todos os vovôs e vovós dormem. As tias dormem também. Estão todos dormindo, com disse Manuel Bandeira. Dormem profundamente. Mas eu prefiro acreditar que habitam outras eras, outros planos com novos netos e novas histórias. Com novos sobrinhos e últimas modas. Eu ainda estou aqui com a mente e o coração repletos de lembranças bem despertas e tão vivas quanto a música de faroeste.No presente, fenos imaginários rolam pelo chão de concreto. Saudades...

3 comentários:

Otavio Cohen disse...

Parece que a nostalgia tomou conta...

Eu não poderia me expressar melhor. também vivi tudo isso aí, exatamente do mesmo jeitinho, mas por um tempo um pouquinho menor. não tão pequeno que não dê pra sentir saudade.

Unknown disse...

certa vez nao sei se li ou se escutei ... mas , então, ...era assim: nao me sinto orfã. Uma coisa é ter e perder, outra coisa é nunca ter tido.

Levanto todos os dias as mãos para o céu e agradeco por nao ser uma menina de apartamento e ter vivo coisas e historias que só em interior uma infancia e juventude pode se viver

Unknown disse...

Ué, agora eu leio esse blog é só pra chorar? Então quero continuar lendo...snif...snif...
Ow, não consegui comentar no post anterior, que foto é aquela, com a lua ao fundo???? Chokita!