quarta-feira, 24 de setembro de 2008

JELLY ROLLS (2º da Trilogia "O Crime Descompensa")


"-
Vou lhe dizer algo e espero que não se esqueça, caso queira ter sucesso na profissão: Nunca sofra por uma dor que não é sua.
- (...)
- Você pode achar isso cruel, mas vai acabar percebendo que não é. Não conseguirá resolver o problema dos outros se envolver seu coração nisso. Envolva a perspicácia, seu raciocínio e resguarde o coração. Veja através de você mesmo, de seus próprios problemas. Estando neles, sentindo a dor que eles lhe causam, fica mais complicado ter uma visão externa que lhe permita resolve-los. É preciso olhar de fora.
- É... Você tem razão. (pensava: E tudo aquilo que me disseram, sobre ser inteiro, sobre o “algo mais”???)
Ele queria ter certeza de que o outro tinha razão, mas ficava inquieto. Não sabia exatamente qual era o seu papel no mundo, se era apenas usar as palavras certas, a eloqüência e apresentar as soluções através de pedidos deferidos, alvarás, sentenças favoráveis.
- O mundo é uma selva.
- Raramente ele não é, rapaz. "
Este foi o diálogo que teve dias antes com um oficial de justiça que ele mal conhecia e que ecoava em sua mente enquanto aguardava que o acusado fosse trazido à sua presença.
- Pronto doutor. O preso está à sua disposição.
O aviso o trouxe de volta para o presente.
Era seu primeiro contato com o homem. Ele estava pálido e ferido, apesar de tratado. Parecia bem mais velho do que a idade que constava em seu prontuário.
Depois da conversa e orientações de praxe, o homem falou em tom de rogo:
- Aqui não é o meu lugar.
- Você é o responsável por estar aqui.
- Aqui é o inferno, durmo no chão frio entre mais de 130 caras, estou sem agasalho, estou com cólicas e essa ferida no braço. E são tantas moscas por lá. Me tire daqui, doutor, pelo amor de Deus!
No depoimento ele disse ser ateu, agora rogava pelo amor de uma entidade que ele sequer acreditava!
- O possível será feito por você. Mas não depende somente de nós, entende?
O homem começou a chorar feito criança. Verdade ou dissimulação?
- Você pode me fazer um favor?
- Peça e eu digo se posso.
- É que amanhã é dia de visita. Como você sabe, toda minha família é de outro estado. Não virá ninguém. Eu to louco pra fumar, sabe?
- Você quer que eu traga cigarros pra você?!!!!
Perguntou meio indignado. Ele não fumava. Detestava a fumaça de cigarros. Agora o homem pedia que ele comprasse...
- É que o cigarro me acalma.
- Está bem, verei o que posso fazer.
- E... Balas de goma. Sabe, aquelas coloridas?
Ele riu com o pedido!Era apaixonado por jujubas. Nunca se contentava com os rolinhos de 10 unidades! Achava mais poético chama-las de Jelly Rolls, como vinha escrito no pacote. É que se sentia no meio de um clipe da Janis Joplin, sabe-se lá porque!
- Você quer jujubas?!!
O preso ficou envergonhado ao assumir que sim. Tinha graça!
- Agora entendi o motivo dos chocolates no meio das outras coisas, seu malandro!
Os dois riram. Era a primeira expressão mais alegre naquele lugar cinza e frio.
- Pode aguardar. Eu trarei!
Não era o seu dever, mas como prometeu, no outro dia ele estava lá com “os pedidos”.
O cigarro entrou e mesmo assim, abriram as carteiras e espalharam todos avulsos numa sacola. Mas as Jellys Rolls foram barradas.
- É que pode ter muita manha dentro de uma simples bala, doutor - disse o agente penitenciário.
- É... Eu entendo.
Porque de repente parecia um crime portar balas?!!!!! Naquele lugar era mais fácil entrar com drogas do que com jujubas!
Foi embora dali. Ao sair, viu uma barraca de acampamento na entrada do presídio e duas moças dentro delas. Mulher de preso - pensou. Ficou pensando se elas faziam aquilo por aventura, por medo ou por amor. Ficou pensando na abnegação de todas aquelas mulheres que subiam o morro do presídio, mulheres de todos os jeitos e corpos caminhando em um séqüito como formigas, cheias de sacolas. Eram mães, filhas, irmãs, companheiras, esposas... Quase não viu homens entre elas, apenas meninos, crianças.
- Não. Não deve ser apenas por medo ou só por aventura. Ia além.
Havia sofrimento no suor daqueles rostos que subiam o morro para o dia de visitas, mas havia também uma beleza que ele não sabia explicar, e que, no entanto, tocava seu coração de tal forma que a garganta comprimia.
A cada um segundo suas obras. Era assim que as coisas funcionavam, o universo se encarregaria do destino de cada um. Daqueles presos pelo lado de fora e daqueles presos pelo lado de dentro. Como acontece com os lírios do campo...
Enquanto descia o morro, entre todos os pensamentos, ressoava aquele diálogo que tivera dias antes.
“Não sofra por uma dor que não é sua.” “Você não faz parte do problema, apenas movimenta as peças!”
Lembrou que aceitara o último caso antes deste, devido às súplicas de uma mãe de condenado e que foram as lágrimas maternas que o moveram, mais do que qualquer outra coisa.
E agora? Estaria ali pelo quê?
O morro acabava no início da estrada.
Ele parou por um segundo, olhou para o pacote colorido de balas no banco do passageiro e concluiu que apesar das inúmeras crianças, todas inocentes, que ficariam muito felizes em ganha-las, aquelas já teriam destino certo no dia da liberdade.
A doce liberdade!
Acelerou, deixando o presídio para trás.
Ele não era o herói do mundo e nem deveria tentar ser. Ele era só o cara que não sabia muito bem diferenciar piedade de compaixão ou misericórdia de pena.
Naquele momento, ele era só o cara das balas.

17 comentários:

sblogonoff café disse...

Bom, texto grande para blog, né?!
Vale dizer, que o homem em questão estava preso há uma semana por haver tentado furtar num supermercado entre outras coisas, algumas barras de chocolate!!!

Anônimo disse...

Muito bom moça das brisas divinais!
é fantástico como escreve, com um jeito envolvente, e um ar característico totalmente seu, mas ao mesmo tempo me faz lembrar bernard cornwell (ele pode descrever uma o som de uma flecha no ar como se estivesse num campo de batalha medieval)... realmente cativante!
^^

Beijos bela =o)

=o****

ps: sim... tiao nasceu da repetição de muitos "Te amo"´s rapidamente, dando a impressão de realmente estar dizendo Tião :)

Anônimo disse...

É realmente difícil nos envolver em algum dilema sem sentir aquilo com o coração. Pelo menos a humanidade ainda sente.
Por todos os lados a gente ouve conselhos pra não envolver demais. Envolver as vezes machuca. As vezes machuca não. Por isso acho que não sirvo pra fazer Direito, as coisas passam por mim primeiro pelo filtro do coração, e por ele saem para o mundo. Já me disseram que meu cérebro está aqui só pra controlar as pulsações do meu coração.

Pois que seja!

Sheyla disse...

Michele,
Texto muito bom! Tenho certeza de poucas coisas nesse mundo de meu Deus. Uma delas é que eu não exerceria a profissão de advogado, nem de médico, jamais!
Meu "tudo" envolve-se, sempre! Porém, desde a meninice, sou médica e advogada, mas graças a Deus, não sou eu, nem eles quem me escolhem. E até agora a permissão para o envolvimento deve-se a uma entrega total!
Bjs.

PS:Em relação a Fortaleza, quando puder, conheça. Tem muitas belezas por lá! Foi uma viagem deliciosa. Mas é como falei: a sujeira está esparramada em todos os lugares de todas as cidades, países, etc. Às vezes, eu não vejo. Às vezes, eu finjo que não vejo. Vendo ou não vendo, eu sinto. Um das minhas cruzes é sentir a dor do outro. Se já não bastasse a minha, né?
Ih, tô parecendo a boazinha, rs...
Logo eu, a tão erradinha, rs...
Ctrl, Alt, Del

Karen disse...

Nossa, estrela! Cada dia você se supera...adoro os pensamentos expelidos meio ao diálogo.
Bom, as vezes me choca prenderem uma pessoa pro furtar comida, mas enfim, é a lei...
Tenho certeza que só os cigarros serviram...por enquanto.
bjs

sblogonoff café disse...

É pessoas...
Não é tão simples não se envolver.
Até acho mesmo que o mínimo de envolvimento deve haver. A paixão é o vento que move os moinhos.
Embora isso não seja problema apenas dos advogados, né?!! Acho que é um problema de todos, dos médicos, dos padres, dos pastores, dos psicólogos, dos irmãos de qualquer fé que trabalham com assistência social.´..
É preciso encontrar um ponto lá dentro que permite-se equilibrar ao ser requisitado para a ajuda.
Se este ponto se envolve, tudo se torna mais difícil de se resolver e o instrumento que poderíamos ser, acaba nem sendo!
Eu estou falando isso aqui, mas sempre morro um pouco perante certos casos.
Quando a dor é mais pungente, quando a ferida está escancarada, é mais difícil manter a frieza e a calma.
A gente penetra feito líquido no pano absorvente.
Ai, ai...

Rafael disse...

mew...
lindo o texto,principalmente o final.
"Ele não era o herói do mundo e nem deveria tentar ser. Ele era só o cara que não sabia muito bem diferenciar piedade de compaixão ou misericórdia de pena.
Naquele momento, ele era só o cara das balas."
só me responda uma coisa,isso aconteceu de verdade?

Elga Arantes disse...

E ainda querem me convencer de acreditar na meritocracia. Eu acho que o termo mais adequado seria "meripocrisia"...

O oficial de justiça está certo, o rapaz está certo, os lírios, também. O Oficial de justiça está errado, o rapaz está errado, os lírios, não. O oficial de justiça não está inteiro, o rapaz não está inteiro, os lírios... nem os lírios nascem completos.

Os fragmentos do cerro, os pedaços do errado, as partes das certezas e das incertezas sobre a definição do que seja certo e errado é o "todo". E as dúvidas, são o "algo mais".

Eu acho. Será?

garfo sem dentes disse...

.... gostei da imagem

Sheyla disse...

Michele,
36 é a flor da idade da Vovó Sheyla. Aos vinte e tantos, adorava a palavra titia.
Então, pedia aos estagiários que trabalhavam comigo que me chamassem de titia. Achava tão lindo! Eles não entendiam porque a diferença de idade não era muita.
Sorriam e não davam muita bola para esse nome.
Os estagiários de agora, eu falo que sou a vovó, e eles sorriem também. Acho tão lindo a palavra vovó!
Tenho uma amiga que só agora acostumou-se com esse termo. Ela é quase dez anos mais velha do que eu.
Hoje, achei tão bonitinho, pois estávamos numa conversa ao telefone, daí falei da minha Alegria e ela disse:
-É, a vovó tem que segurar a onda.
Falou naturalmente. Achei tão lindo!
Essa é uma esquisitice. Uma entre tantas, rs...
Ah, já comprei até uma cadeira de balanço.

Unknown disse...

Lindo conto. Me emocinei lendo.
Por mais estranho que pareça o que eu vou dizer, tem algumas coisas ali que se encaixam na minha vida, em momentos...

Malaguetta disse...

adorei

ja fui a moça das balas umas veses

Malaguetta disse...

adorei

ja fui a moça das balas umas veses

Anônimo disse...

Vampira
O rapaz???
Balas???
Odeia cigarros???
Parei de fumar tb!! Tb tô começando a odiar cigarros!! E tb ainda acho q falar de um amigo meu é mais fácil que falar de mim mesmo!!!
Bj.

Patrícia Ferraz disse...

E assim a gente enxerga em todas as profissões mais que os podres, as possibilidades: de ajudar, de fazer bem, de realização. Há advogados e advogados, jornalistas e jornalistas... Quem somos nós? Quase todos os dias, dou notícia de um acidente com mortos em rodovias, de pessoas assassinadas, de crimes, irregularidades, desios de conduta... No dia em que não me emocionar com a fala de uma mãe que perdeu o filho; que não me arrepiar diante da única sobrevivente de um acidente que matou a mãe, o pai e os dois irmãos; que não me indignar com os crimes cometidos friamente e que não me policiar para transmitir tudo isso com o máximo respeito ao ser humano e à sua dignidade posso deixar o jornalismo. Assim imagino... (as reticências também estão ao meu encalço! e vice-versa.)

Mariana Ornelas disse...

A vida é assim mesmo, cheia de Hancock`s por onde passamos...onde não se dá nada ,surge um super herói, e onde esperamos um, ali pode não se ter .

Porém em cada um a sempre algo atrapalhado mesmo qdo se tenta o certo mas há tb um coração disposto a ajudar que as fezes nos impulsiona a coisas que nao temos porques e qdo isso se aproxima nos tornando mais humanos e vulneraveis tb.
;) essa é a vida . Bem vinda a realidade!

Anônimo disse...

[url=http://community.bsu.edu/members/buy+online+Viagra.aspx]Viagra no physician[/url]